Nesta ordem de idéias, a obra Cangaceiros e Fanáticos tem um valor histórico e força atual extraordinários. É certo que existem numerosos livros, artigos e crônicas escritos sobre o processo histórico da formação do povo nas regiões nordestinas[...]
Enquanto inúmeros sociólogos, escritores romancistas, poetas e jornalistas se dedicam à descrição dos fatos, destacando episódios pitorescos, mesmo interessantes, belos ou revoltantes, da miséria daquelas plagas, das lutas das massas, dos crimes dos coronéis latifundiários e governantes, e outros, que é o mais comum, apresentam a massa camponesa como turba atrasada, fanática, criminosa, tendente ao crime, ao assalto, ao cangaceirismo, e bendizem a ação impiedosa, terrorista e de genocídio dos coronéis latifundiários[...], Rui Facó age de forma inteiramente diferente.
Ao investigar os fatos históricos que culminaram com Canudos e o Conselheiro, Juazeiro e o Padre Cícero, o jagunço e o cangaceiro, demonstra, com um arrolamento de fatos e provas esmagadores e irrespondíveis, que as classes dominantes, em especial os latifundiários, vêm cometendo ao longo da História uma "guerra de extermínio de milhões de brasileiros", como a classifica, com razão, Franklin de Oliveira em seu livro Revolução e Contra-Revolução no Brasil.
[...] Ele inicia seu livro demonstrando o surgimento da classe latifundiária fundida com características predominantes pré-capitalistas e ao mesmo tempo capitalistas, como nas usinas de açúcar. Mas sua principal característica é o monopólio da terra: as sesmarias - a base da colonização - se desenvolvem em nível diferente, mas continua a base - dos semi-escravos, dos semi-servos, do semifeudalismo. Testemunham esta realidade historicamente nos seus documentos, do século passado e início deste, A. Rebouças, o presidente do Estado de Pernambuco, Domingos Velho Cavalcanti de Albuquerque, o Visconde de Taunay e outros.
[...] Facó mostra como são errôneas as teses de vários sociólogos como Nina Rodrigues, Lourenço Filho e mesmo Euclides, da Cunha, que atribuem as causas do surgimento do cangaceirismo à natureza do sertão, às condições biológicas, à mistura de raças, etc. Vários deles buscam soluções materiais e espirituais para este fenômeno, como acabar com ele.
[...] Xavier de Oliveira, filho de Cariri, dizia na sua obra Beatos e Cangaceiros: " O homem honesto e trabalhador de outrora é um bandido agora, por causa de questões da terra". Esta é a verdadeira origem e causa dos cangaceiros e fanáticos: trabalhadores sem terras, na miséria, explorados e perseguidos. Diz Facó textualmente:
O surgimento e o incremento do cangaço é a primeira réplica à opressão e à decadência do latifúndio semifeudal, de que também é resultante [...] Naquela sociedade primitiva, com aspectos medievais, semibárbaros, em que o poder do grande proprietário era incontestável, até mesmo uma forma de rebelião primitiva, como era o cangaceirismo, representava um passo à frente para emancipação dos pobres do campo. Constituía um exemplo de insubmissão. Era um estímulo às lutas. O cangaço precede os grandes ajuntamentos de "fanáticos" que tiveram seus pontos culminantes em Canudos e no Contestado.
Para a reação, o perigo era o "ajuntamento", a "solidariedade", o "trabalho coletivo", livre de opressor, tanto podia ser um ajuntamento desarmado, religioso e supersticioso, fanático ou de outra forma qualquer. A característica que se ia desenvolvendo entre as massas rurais e espoliadas, Canudos, Contestado, Caldeirão, era a de uma religião própria que lhes servia como um instrumento de luta pela libertação social, como o foi em seu tempo o Cristianismo.
Assim como o cangaço é um movimento ativo, o misticismo surge como elemento passivo na resistência: assim surgiram Antônio Conselheiro, Beato Lourenço e Padre Cícero. Embora suas funções fossem diferentes e com características particulares, eram declarados não-oficiais pela Igreja de então. Sempre ela precedia a sua ação à da repressão.
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